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Inaugurada em plena crise, longa, global e nacional (no seu fundo essencial, uma crise de “crenças” e de valores, não esqueçamos), é bom que a Trienal de Arquitectura de Lisboa constitua um evento vencedor, afirmando, com confiança e lastro, o pensamento criativo. Em termos gerais, é o que se consegue com o tríptico de exposições que esta segunda edição da Trienal de Lisboa preparou, sob o comissariado/curadoria estruturante de Delfim Sardo: Falemos de casas: entre o Norte e o Sul, no Museu Colecção Berardo; a mostra dupla Falemos de casas: projecto Cova da Moura/A House in Luanda: Patio and Pavilion, no Museu da Electricidade; e Falemos de casas: quando a arte fala arquitectura [construir, desconstruir, habitar], no MNAC -– Museu do Chiado. 

Para além de outras, sequentes e relacionadas, e dos ciclos de conferências, são estas as exposições que centram o evento-trienal, e lhe dão o corpo teórico e a substância material, durante alguns meses.

O “truque”, ou a “chave” para o claro êxito desta iniciativa consistiu, quanto a nós, no facto de a direcção da Trienal 2010 (José Mateus, Nuno Sampaio e Pedro Araújo e Sá) ter assente esta edição no desafio a um pensador das áreas da teoria, da filosofia e da estética – portanto “exterior”, de facto, à disciplina arquitectónica –, para conceber a iniciativa. Assim se criou um suporte conceptual inovador e inventivo, mas, sobretudo, sabendo olhar “de fora para dentro”, de forma múltipla, transdisciplinar e aberta (despida do “preconceito” de “ser arquitecto”), o mundo da arquitectura. 

Fugiu-se, deste modo, ao problema corrente das exposições de arquitectura feitas por arquitectos, para arquitectos “e” também para os restantes públicos (com a dificuldade sabida dos não especialistas em penetrar no universo complexo da nossa disciplina) – problema que, embora até com mais espectacular dimensão e real eficácia, a primeira edição da Trienal, apesar de  tudo, enfermou em 2007. Significativo deste processo renovador é o convite feito ao artista plástico André Cepeda para a execução dos registos fotográficos patentes na mostra: não sendo um “fotógrafo de arquitectura”, captou-a com o seu olhar específico e criativo de artista.

Em termos de conceito, Delfim Sardo optou pelo tema da(s) Casa(s), isto é, do habitar e viver o espaço em termos elementares e universais. Este parece ser um segundo aspecto “triunfador”: trata-se de um tema claro e simples, unificador e fortemente comunicativo.

Já Heidegger escrevia, na sua leitura do tema: “Ser Homem significa [...] habitar. [...] Só quando podemos habitar, podemos construir. [...] Habitar é o traço fundamentar do Ser [...].”

Assim, ao “falar de casas”, partindo de uma abordagem tão apa-rentemente “chã”, torna-se possível convocar uma série de temas e de subtemas organizadores do pensamento, mas que efectivamente permitem apresentar múltiplas obras, processos, sistemas e evoluções, no quadro considerado.

Neste aspecto, a mostra “principal”, a do Museu Colecção Berardo, é patenteadora da referida aproximação aberta, multidisciplinar e diversificada (com a assistente curatorial Julia Albani): num registo quase intimista, de “música de câmara”, esta contida exposição vai deslizando num espaço fluido (que a serve bem, em compartimentação “negra” que nos encaminha naturalmente para um  “percurso circular”, com desenho de Sofia Saraiva, Ana Miguel e Pedro Rogado). 

Através deste espaço-sequência, os sucessivos temas são convocados e exibidos, e vamos olhando os seus variados aspectos:

• da História – as “casas para o povo” do tempo do SAAL, por Catarina Alves Costa; a Casa do Futuro pensada no século passado por Alison e Peter Smithson, por Max Risselada e James Peto; as casas modernas do Sul no Recife, em Luanda e no Maputo, de consagrados autores modernos dos anos 1950/1960, integradas no conjunto comissariado por Manuel Graça Dias e Ana Vaz Milheiro, intitulado “África/Brasil:
a Cidade Popular”;

• da Geografia – as “casas em Portugal” [“Falemos de casas... em Portugal”], com uma assunção pluritipológica, desde a elitista casa de férias ao bairro social-colectivo, por Luís Santiago Baptista e Pedro Pacheco; a “Ligação nórdica”, num plano de necessários contrastes com a realidade lusa, por Peter Cook; o inesperado “caso Novartis” [“Fronteiras: o caso Novartis”], com Siza e Souto de Moura de algum modo divertidamente sacralizados numa sala-capela luminosa, com as maquetas das suas obras em cima do “altar” branco, por Diogo Seixas Lopes;

• e, finalmente, a emergência do Social e do Colectivo, com a “África/Brasil: a cidade popular”, já citada, analisada quer pela escrita-crítica de autores da lusofonia à cidade “formal-sitiada”, afro-brasileira, quer através da apresentação de novas soluções espaciais para as grandes áreas da envolvente cidade “espontânea” ou, no politicamente-correcto de hoje, “informal” (tem forma, só que é infinda) – incidindo também sobre Recife, Maputo e Luanda.  

Deste modo, integrador, entre “dialécticas criativas”, elementares, de oposição (norte-sul, passado-futuro, individual-social) se concretiza a viagem do visitante, potenciando os contrastes de linguagem, entre os antecedentes e o futuro, navegando no espaço e no tempo – dando um sentido claro à multidão de vozes, textos, luzes e cores, maquetas, fotos e desenhos convocados.

As outras duas mostras, de algum modo, de sentido complementar, mas, ainda assim, conceptualmente “soltas” em relação à primeira, alargam o campo de leitura arquitectónica e dos conceitos ligados à “casa”: 

a mostra do Museu da Electricidade, através de uma ampla representação, por via de dois concursos, o primeiro executado em diversas escolas de arquitectura e, o segundo, num quadro internacional mais alargado. Surgiram, assim, projectos e soluções de espaço, materiais e formas, para duas áreas de “cidade informal” pré-designadas, a Cova da Moura na envolvente de Lisboa e o espaço dos musseques de Luanda, (comissários Manuel Aires Mateus e João Luís Carrilho da Graça; assistente curatorial Rita Palma); num quadro expositivo irónico, quase luxuoso, a alcatifa suave e branca contrasta com o ferro e as maquinarias da antiga central térmica, envolvendo carinhosamente as mesas curvas exibindo as maquetas e os desenhos das 60 propostas seleccionadas, com as mais diversas expressões visuais e plásticas;

a mostra do Museu do Chiado, de que Delfim Sardo foi o próprio comissário executante, trabalhando aqui no seu campo profissional específico, e onde congregou um conjunto assinalável de obras e artistas internacionais, incidindo na reflexão sobre as relações (“cruzamentos”) entre arte e arquitectura, ou construção, ou espaço – ou muitas outras maneiras de dizer esta temática; vemos desde a instalação por Ângela Ferreira, sobreposta ao átrio do museu, passando pelo trabalho foto-pictórico por Julião Sarmento, até à “sala-sacra” evocativa dos modernistas, com maquetas reinventando o Pavilhão de Mies em Barcelona, ou as suas cadeiras bauhausianas. Como se diz no catálogo, “é sobre a fala arquitectónica que percorre a arte contemporânea”.

 

 

Falemos de casas

SETE EXEMPLOS

em Cascais

Inaugurada mais tarde do que as restantes, embora englobada no mesmo conjunto programado, a exposição Falemos de [7] casas em Cascais estará patente no Centro Cultural de Cascais, até final de Janeiro de 2011. É curadora a arquitecta Ana Tostões e o projecto expositivo é coordenado pelo arquitecto João Mendes Ribeiro.

Consta de uma sala com o conjunto de painéis alusivos às setes casas seleccionadas, articulada com uma outra, mais cenicamente organizada, com as sete “maquetas-em-corte”, e respectivos vídeos e textos, num todo envolvido pelas frases poéticas de Herberto Helder, de onde emanou a designação da mostra.

No intróito do certame, destacava-se que este estava “[...] focado na produção da arquitectura doméstica com o objectivo de revelar os dispositivos espaciais, funcionais e paisagísticos de uma concepção feita para responder ao quotidiano da vida privada. [...] Cascais tem uma atmosfera feita de casas de excepção. [...] Os sete casos de estudo constroem uma rede lançada da Casa Portuguesa ao Modernismo, do espírito clássico à modernidade radical”.

Os painéis, com cuidada documentação fotográfica actual (por FG SG)1, com desenhos (a escalas comparáveis entre si) e textos de síntese, exibiam as habitações seleccionadas: a Casa Monsalvat (Raul Lino, 1901-02) [1], no apogeu do movimento da Casa Portuguesa; o Casal de Monserrate (Pardal Monteiro, 1931-35) [2] e a Casa Vale Florido (Cristino da Silva, 1937-38) [3], ambas expoentes do Primeiro Modernismo Português; a Casa Sande e Castro (Ruy Jervis d’Athouguia, 1956-57) [4] e a Casa Carmona e Costa (Francisco Keil Amaral, 1962-63) [5], dentro do Movimento Moderno do pós-guerra; a Casa Valadas Fernandes (Francisco Conceição Silva, 1968-71) [6], já perto da revisão late-modern; e a recente Casa Correia Vicente (Pedro Mendes, 1999-2003) [7], característica da arquitectura contemporânea.

Os painéis, muito sucintos, conseguiam transmitir o essencial de cada caso-casa, de forma contida, em texto e imagem; mais espectacular, o dispositivo cénico-teatral montado em “sala escura” por João Mendes Ribeiro exibia sete como que “caixas de palco”, de madeira clara sobre rodas, integrando cada uma a chamada “maqueta interpretativa”, em grande dimensão, com o complementar material de análise (fotos antigas, textos, desenhos dos projectos, fotos actuais).

Apetecia ver sintetizada, numa ou duas palavras, cada uma destas sete experiências de espaço; atrevemo-nos a propô-lo: a obra de Lino será “delicada e artesanal”; a de Monteiro, “parisiense e mundana” e a de Cristino, sem dúvida, “clássica e gráfica”, a um tempo. Quanto à casa de Athouguia, tem um sentido “miesiano e austero”, enquanto a de Keil transmite uma expressão “intimista e orgânica”. Já a peça por Conceição Silva parece “grandiosa e complexa”, enquanto a de Pedro Mendes será “espacialista e minimalista”.

Sem deixar de considerar a mostra globalmente de patente qualidade, fica uma interrogação: nota-se a ausência, não explicada, de obras das décadas de 1940 e de 1980-90. Se o objectivo, como se sugere claramente, foi ocupar um tempo sensivelmente centenário, porquê esta ausência (mas há duas casas modernistas, e três modernas, na selecção), com exemplos potentes dessas décadas em Cascais? Por corresponder à desconsiderada “arquitectura neo-tradicional do Estado Novo”, uma? E a outra, eventualmente às efabulações pós-modernistas? Levanta-se assim a questão, ainda em aberto criticamente falando, dos opostos valores da modernidade e da tradição na arquitectura portuguesa do século XX... Ambos os temas presentes, não só os modernizantes.|


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1 

Fernando Guerra e Sérgio Guerra [N.E.].

 


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